sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Desindustrialização precoce, recessão e crise fiscal

Resultado de imagem para ArtigoO atual debate econômico brasileiro está fortemente concentrado nas propostas de limitação à evolução dos gastos públicos, mas não podemos perder de vista o impacto das mudanças na estrutura produtiva sobre a brutal recessão em que mergulhamos e suas consequências sobre o próprio quadro fiscal. Para explicar nosso argumento, vamos nos valer de um conjunto de dados macroeconômicos, denominado de Matriz Insumo Produto (MIP), divulgado em sua última versão pelo IBGE ao final de setembro, e que nos ajuda a entender em maiores detalhes as características principais da estrutura produtiva da economia brasileira. 

Uma MIP pode ser comparada a uma "fotografia" dos fluxos de produção e demanda envolvendo todas as atividades e setores econômicos ocorridos em um determinado ano. Dada a complexidade de mensuração dos fluxos, além da escassez de recursos do IBGE, há uma grande defasagem entre o ano da "fotografia" e sua respectiva divulgação no caso brasileiro. O ano de referência da MIP recém-divulgada é o de 2010, sendo a última disponível até então a correspondente a 2005. 
Antes mesmo da divulgação da matriz, já era sabido que a indústria de transformação foi um dos segmentos que mais perdeu espaço na estrutura produtiva brasileira. O peso médio da indústria de transformação no valor adicionado (PIB) total, no primeiro semestre de 2016, foi de 10,9%, significativamente inferior aos 15%, em 2010, ou aos 17,4%, em 2005. 
Vale lembrar que, a despeito dos efeitos da crise financeira internacional eclodida no fim de 2008, o período compreendido entre as duas últimas MIPs (2005-2010) foi marcado pelo último ciclo de crescimento, no qual o PIB se expandiu, em termos reais, a um ritmo médio de 4,5% ao ano e, mesmo assim, a indústria registrou queda em sua participação relativa tal qual citada acima. O excelente desempenho da economia brasileira parece ter tornado este fato menos aparente. 
Com os novos dados da MIP de 2010, no entanto, obtemos informações complementares que apontam para novos efeitos perversos, que ainda não haviam sido estimados, de uma desindustrialização precoce. Embora tenha havido mudanças metodológicas entre as duas MIPs, análises comparativas em níveis mais agregados são válidas e elucidam mudanças estruturais importantes. Uma das análises refere-se ao cálculo dos chamados multiplicadores, os quais mensuram os efeitos diretos e indiretos que a produção de uma unidade monetária de cada atividade gera sobre o Valor Bruto de Produção (VBP) e Valor Adicionado (VA) das demais atividades. Quanto maior o efeito estimado, maior o grau de encadeamento produtivo, ou seja, maior o nível de integração entre as atividades econômicas. 
Com base na MIP de 2005, em sua versão mais agregada composta por 12 atividades, a produção de R$ 1 de cada uma delas gerou direta e indiretamente R$ 4,10 no VBP da indústria de transformação. Considerando que o VA corresponde a uma parcela do VBP, o efeito direto e indireto da mesma unitária monetária de produção sobre o VA da indústria de transformação é naturalmente menor, sendo de R$ 1,04, em 2005. Em 2010, ano do auge do ciclo de crescimento, os efeitos multiplicadores incidentes sobre o VBP e VA mostraram-se, contraditoriamente, significativamente menores. Com base na mesma metodologia, o impacto total da produção de R$ 1 de cada atividade sobre o VBP da indústria de transformação foi de R$ 3,50, enquanto o efeito total sobre o VA desta indústria caiu para apenas R$ 0,87. 
Estes resultados mostram que a economia brasileira cresceu no período 2005-2010 com enfraquecimento da relação entre o centro dinâmico da atividade produtiva e o restante da economia. A expansão esteve essencialmente calcada no setor de serviços, em particular daqueles de baixa produtividade e intensivos em trabalho, com destaque para o comércio. A desconexão entre os setores industriais no âmbito da cadeia produtiva, por sua vez, esteve diretamente associada ao crescimento explosivo das importações no período, de 15,3% ao ano que, em grande medida, substituiu parte expressiva da produção industrial. 
A reversão do ciclo de crescimento, a partir de 2011, tem como uma de suas principais raízes a insustentabilidade deste modelo de crescimento. Embora não tenhamos MIPs para anos mais recentes, sabemos que, entre 2010 a 2014, as importações seguiram crescendo em ritmo muito acima do PIB (média de 4% contra 2,1% ao ano), enquanto a indústria de transformação apresentou variação média de 0,3% ao ano. Isto indica a continuidade na dinâmica de enfraquecimento dos encadeamentos produtivos, elemento também fundamental para entendermos a recessão de 2015/16. 
Não estamos com essa afirmação defendendo um modelo de economia fechada, mas ressaltar que tal variação das importações no referido contexto é totalmente desproporcional a qualquer tentativa de crescimento consistente de longo prazo baseada em uma sofisticação da estrutura produtiva. 
Por fim, esse cenário também teve impactos sobre o resultado fiscal. Segundo as MIPs, cada R$ 1 produzido pela indústria de transformação arrecadou R$ 0,14, em 2010, superior aos R$ 0,04 arrecado com o mesmo R$ 1 produzido pelos serviços. Assim, o direcionamento da estrutura produtiva na direção dos serviços menos qualificados, com menor capacidade para gerar tributos, também contribui para explicar a reversão da tendência de crescimento das receitas do Tesouro, a partir de 2012. 
Portanto, a perda da relevância do setor industrial, principal centro dinâmico do crescimento, ajuda a explicar a recessão e a própria crise fiscal. Neste sentido, a política econômica deve ter como um dos seus pilares principais a retomada do crescimento da indústria e dos serviços modernos a ela interligados na cadeia produtiva, o que requer maior discussão sobre o papel da taxa de câmbio, taxa de juros, salários, infraestrutura e desenvolvimento tecnológico, reduzindo o excessivo foco que, hoje, recai apenas sobre a solução da crise fiscal.

Por Thiago Moreira e Nelson Marconi*

*Thiago de Moraes Moreira é mestre em economia pela UFRJ e membro do Grupo de Reindustrialização.
*Nelson Marconi é professor de economia da EESP-FGV e da PUC-SP, presidente da Associação Keynesiana Brasileira e membro do Grupo de Reindustrialização.

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